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CRÍTICA: SILÊNCIO (2016)

Silêncio é um filme lançado em 2016 e dirigido por Martin Scorcese, baseando-se no livro do autor Shusaku Endō, Chinmoku (baseado em fatos reais). Devido ao intervalo de tempo entre o seu lançamento e a elaboração deste texto, trata-se mais de uma reflexão do que de uma crítica. Devido ao fato de poucos terem-no assistido, a história será aqui detalhada (portanto, spoilers a seguir).

A obra narra a história de dois padres jesuítas (Sebastião Rodrigues e Francisco Garupe) que tomam conhecimento, através uma carta, do rumor de que o seu tão respeitado e admirado mentor, Padre Ferreira, poderia  ter se apostasiado (renunciado ao Cristianismo) no Japão. Por questões de extravio a carta só foi recebida pelo convento sete anos após o seu envio. O seu conteúdo apenas contava sobre a tortura e morte de padres cristãos no país, ao passo que o rumor de sua apostasia e constituição de família com esposa e filhos japoneses fora contado pelo mercador responsável por conseguir resgatar o documento e trazê-lo ao convento. Nunca foi colocado em questão se a carta era verdadeira ou falsa, a única dúvida era o que de fato acontecera com Ferreira, afinal sete anos haviam se passado desde o envio. Devido à enorme gratidão sentida pelos dois jovens padres, decidiram ir ao Japão em busca do velho mentor (vivido por Liam Neeson).

Rodrigues é interpretado por Andrew Garfield (cujo maior azar foi protagonizar os dois O Espetacular Homem-Aranha), enquanto seu colega Garupe é vivido por Adam Driver (que começou a ser reconhecido por Girls, mas cuja atual fama se deve ao Kylo Ren).

O objetivo inicial se perde no momento em que chegam ao Japão, guiados pelo conterrâneo Kichijiro. Logo encontram tribos de locais convertidos à religião cristã, que sentem-se mais amparados do que nunca pelos dois. A necessidade de ajudar os fiéis (que vivem em extrema pobreza), somada ao fato de que nenhum deles sabia sobre a existência do tal Ferreira, leva-os a deixar a busca de lado. Apesar de os dois objetivos principais serem esses, a maior parte do tempo é ocupada por sobreviver na miséria e esconder-se do perigo, considerando que o inquisidor Inoue oferece 100 moedas de prata por qualquer cristão e 300 por padre. O Cristianismo é terminantemente proibido no Japão daqueles tempos (o filme se passa sobretudo entre 1640 e 1641). Não demora muito para os dois começarem a questionar a sua fé. O personagem de Driver manifesta o medo através da insegurança e raiva, enquanto o de Garfield o manifesta em si mesmo, sempre em choque com o que vê.

O nosso conhecimento atual sobre os males que o Cristianismo trouxe através dos tempos pode logo nos deixar incomodados com a interferência da Igreja em solo estrangeiro, e certamente poderiam ser feitos filmes que mostrem o ângulo dos japoneses nessa temática. Contudo, a maior mensagem talvez seja sobre a intangibilidade da fé. A necessidade de tornar o abstrato algo concreto é intrínseca ao ser humano, mesmo atualmente. Nossos pensamentos e sentimentos são constantemente depositados em algo físico, desde tatuagens até simples objetos. Quando amamos determinado filme ou banda, ansiamos por possuir seus itens de merchandise (como pôsteres, copos, action figures, camisetas) ou até mesmo por marcar nossa pele (o que vale também para o amor por outras pessoas). No caso da fé religiosa, o mesmo vale até hoje, mas não de forma unânime como no passado.

O filme mostra o que já sabemos: a necessidade de externalizar a fé através de objetos e de ações (cultos). A diferença é que os cristãos aqui estão na posição de vítimas. A externalização da fé não se dá por padres em sua aura de autoridade, dentro de seu conforto. Trata-se de dois padres em total situação de provação e miséria, guiando pessoas que podem ser (e são) mortas a qualquer momento, simplesmente por acreditar na figura de Deus e do paraíso.

Após metade do filme os dois separam-se, e passamos a seguir a trajetória de Rodrigues. Não demora até que o guia Kichijiro (personagem que sempre varia entre a covardia e o desejo de seguir na fé) o traia. A partir de então o padre recebe em diversas ocasiões a proposta de renunciar publicamente à sua religião, e sempre a nega, resultando em constantes mortes de cristãos japoneses. Acompanhamos por todo o filme a resistência de Rodrigues, a sua força em não se deixar levar pelas provações da vida carnal. Cada momento de fome ou sede, cada lamento pela morte de algum seguidor parecem deixá-lo mais forte. A beleza com que o personagem enxerga com resiliência a sua dor é igualmente bela, e assim permanece até que o filme prove o seu ponto.

O inquisidor em nenhum momento deseja matar os padres, por haver descoberto que isso apenas gera mártires. Após matar diversos súditos decide trazer Ferreira até Rodrigues, quando o segundo finalmente descobre que o rumor era inteiramente verdadeiro. Ferreira tenta convencê-lo a seguir seus passos e viver uma boa vida no Japão, contribuindo ao país com conhecimentos de sua terra natal (como de astronomia). Percebemos, então, que Rodrigues e Garupe são mais fortes que o antigo mentor, incorruptíveis. O primeiro resiste até então, enquanto o segundo acaba morrendo afogado em dado momento, ao tentar salvar uma fiel.

A última tentativa do inquisidor é realizar uma tortura mais intensa com alguns prisioneiros cristãos, em que o padre assiste sob o discurso de Ferreira. Convencido de que os prisioneiros não estavam sofrendo por Deus, mas sim por ele mesmo, e incapaz de ter mais mortes em sua consciência, o protagonista cede. Os dois apóstatas então passam a atuar na investigação de itens comercializados pela Holanda em territórios japonês, e tal cena é crucial para o entendimento do personagem de Garfield. O personagem de Neeson deixa escapar (ou diz propositalmente) a frase “o nosso Deus”, e quando Rodrigues repete a sentença, o mentor logo emenda que tais palavras jamais foram ditas por ele. É a partir desse momento que o jovem entende que o outro nunca abandonara a velha fé, apenas fez o necessário não só para sobreviver, mas para permitir que os seus seguidores também o fizessem. Ferreira mostrou-se mais forte que os aprendizes.

O filme segue com o salto temporal de um Rodrigues mais velho (há muito Ferreira havia falecido), vivendo com uma esposa e um filho japoneses, sem jamais demonstrar nenhum sinal de fé cristã, e recebendo um enterro (em mais um salto) budista. O diretor opta por não deixar a situação em aberto, revelando que por todo o restante de sua vida Rodrigues permaneceu cristão e guardava muito bem uma cruz (que serve para nos mostrar tal fato, pois como objeto de culto contraria a ideia do filme) que recebera no início do filme de um cristão local. Precisamos nos apegar a algo concreto, mas o conceito de Deus é abstrato. Em nenhum momento se pretende afirmar se Deus existe ou não, ou em que circunstâncias existe; mas o seu silêncio é de total certeza. Em vez de ser desacreditado, é mais ouvido ainda pelo que não diz, ocupando o verdadeiro papel de protagonista da obra. O seu silêncio passa a ser também o do padre, e ambos dizem muito. Em dois momentos o inquisidor e Ferreira conversam com Rodrigues sobre como os camponeses que estão morrendo por ele nem sequer entendem sobre o que se trata Deus ou a religião cristã em si. De que valiam as suas mortes, então? De que valia o preciosismo dos padres?

O erro que perpassa toda a trama, portanto, não é apenas o de tentar exercer a sua fé sobre a fé do outro, mas o de não entender que a crença e os sacrifícios originados dela ocupam outra posição. Trata-se muito mais de entender e internalizar a verdadeira mensagem do que lutar cegamente por um lugar no paraíso. O sacrifício de Rodrigues para manter o seu amor mesmo sob tão duradouro silêncio é maior do que o seu sofrimento ao longo dos 161 minutos de filme, e entende-se que Deus realiza o mesmo constantemente. Se antes o próprio padre comparava a sua provação com a de Cristo, a sua nova e verdadeira provação é como a do Criador. Como encontra-se escrito em muitos centros espíritas, “o silêncio é uma prece”.

CRÍTICA: SILÊNCIO (2016)
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